BRADBURY,
Ray. Fahrenheit 451. tradução: Cid Knipel. 3.ed. São Paulo: Globo, 2020.
p.134-136
[...]
Sabe, eu tive um sonho uma hora atrás. Deitei para tirar uma soneca e sonhei
que você e eu, Montag, entramos em uma violenta discussão sobre livros. Você
espumava de raiva, gritava canções para mim. Eu aparava calmamente cada
investida. O poder, eu disse. E você, citando o doutor Johnson, respondeu:
"O conhecimento vale mais que o poder!". E eu disse: "Bem, meu
caro rapaz, o doutor Johnson também disse que "Nenhum sábio no mundo
trocará uma certeza por uma incerteza". Fique com os bombeiros Montag,
Tudo o mais não passa de um caos sinistro!
[...]
-
E você disse, citando: "A verdade virá à luz, o assassinato não ficará oculto
por muito tempo!". E gritei, bem-humorado: "Meu Deus, ele só está
falando do seu cavalo!". E ainda: "O Diabo é capaz de citar as
Escrituras para atingir seus fins". E você gritou: "Esta época preza
mais um idiota engalanado do que um santo em farrapos na escola da
sabedoria!", e eu sussurrei suavemente: "A dignidade da verdade se
perde no excesso de protestos". E você gritou: "As carcaças sangram À
visão do assassino!". E eu disse, acariciando sua mão: "O quê, eu lhe
provoco estomatites?". E você gritou, estridente: "Conhecimento é
poder!" e "Um anão nos ombros de um gigante vê mais longe que os
dois!", e eu resumi minha opinião com rara serenidade interior: "A
insensatez que consiste em tomar uma metáfora por prova, uma verborragia por
uma fonte de verdades capitais, e a si mesmo por oráculo, é inata em nós",
disse certa vez o senhor Valéry.
[...]
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Ah, você ficou morto de medo - disse Beatty -, porque eu empregava um recurso
terrível, usando os mesmos livros a que você se apegava, para rebater cada uma de
suas cartadas, cada ponto! Que traidores os livros podem ser! Você pensa que
eles o estão apoiando, e eles se viram contra você. Além disso, outros podem
usá-los e lá está você, perdido no meio do pântano, em um grande atoleiro de
substantivos, verbos e adjetivos. E bem no fim do meu sonho, cheguei com a
Salamandra e disse: "Vem comigo?". E você subiu e voltamos para o
posto de bombeiros em beatífico silêncio, tudo de volta à paz. Beatty soltou o
pulso de Montag, deixou a mão cair frouxa sobre a mesa. "Tudo está bem
quando tudo acaba bem."